“A ética do século XXI é a Bioética”, afirma filósofo espanhol.

Entrevista com Diego Gracia, médico bioético espanhol e presidente  da Fundação X. Zubiri.

(0riginou, em 18/11/ 2017, o trabalho de Felipe

Cherubin com o mesmo título publicado no Estadão).

Por Felipe Cherubin.

Nota. De novo Felipe Cherubin dialogando com o grande médico e filósofo espanhol Diego Gracia, discípulo de X. Zubiri.

1.-O que é a bioética para o Sr. e como surgiu seu interesse para estudar um campo tão complexo?

A bioética é um movimento que começou em torno de 1970. Naqueles anos eu já tinha estudado Filosofia e Medicina. Aconselhado pelo meu mestre, o professor Pedro Laín Entralgo, fui à Alemanha, onde se tinha desenvolvido durante a metade do século XX um movimento filosófico-médico chamado de “Antropologia médica”. Esta inovação foi o tema de minha tese de doutorado que defendi em 1973. Mas, nesses mesmos anos fui assistindo ao nascimento da Bioética nos Estados Unidos de América. Esse movimento me interessou muito, especialmente, porque sua aplicação prática era mais evidente e, portanto, poderia servir para melhorar a qualidade da assistência médica. Então, viajei parta Estados Unidos no ano 1976 e visitei os principais centros que trabalhavam com a Bioética. Dessa forma ao voltar à Espanha eu tinha uma ideia bastante clara das forças e das debilidades da Bioética americana. Por isso, decidi orientar meu trabalho para essa descoberta, procurando, se fosse possível, unir o pragmatismo da bioética americana com a sólida fundamentação filosófica que se ensinava em Europa.

2.- O Sr. fala que voltou dos Estados Unidos com uma ideia bem clara das fortalezas e das debilidades da bioética norte-americana. O Sr. poderia falar mais sobre isso para novas gerações, que estamos na encruzilhada em buscar novos pontos de apoio na fundamentação do futuro da humanidade?

Antes de ir aos Estados Unidos, eu estudei na Alemanha o movimento de Antropologia médica, que era o ponto de interseção entre Filosofia e Medicina. Todo isso era enormemente interessante, mas repercutia muito pouco na prática, pois era difícil aplicá-lo no dia a dia. Assim, quando fui aos Estados Unidos descobri que a Bioética sim que era prática, que chegava ao médico prático e buscava transformar sua prática diária. Isso me pareceu muito importante, e se tornou a aprendizagem mais valiosa que tirei de minha experiência norte-americana. Também adverti em todo esse movimento um defeito, que era a falta de fundamentação filosófica. Dessa forma, quando voltei à Espanha o que me propus foi buscar um meio de unir ambas tradições, a europeia, mais fundamentadora, e as norte-america, mas pragmática. É o que tenho tentado fazer em todo o tempo ao longo de minha obra.

3.-Os temas relacionados com a verdade e a liberdade geram grandes e acaloradas discussões. Também, muitas vezes carecem de fundamentos caindo nos fundamentalismos. O que a bioética pode esclarecer sobre questões delicadas como o aborto e a eutanásia tornando o debate mais racional?

A bioética pode nos ensinar um modo de enfocar os problemas morais e a tomar decisões sobre eles. A este tema tenho dedicado o major esforço ao longo dos anos. O raciocínio moral tem um método específico, que desde Aristóteles recebe o nome de “deliberação”. Esclarecer isto tem sido o tema fundamental em toda minha atividade. Mas, constatamos hoje que aos seres humanos não lhes gosta deliberar, senão tomar decisões imediatas. Hoje sabemos que essas deliberações estão cheias de muitas tendências, e por tanto não são confiáveis. Kahneman escreveu um famoso livro titulado “Pensar rápido, pensar devagar”, nele diz coisas parecidas. Há que educar a sociedade na deliberação. Esta devia ser à base da educação da escola primária. Mas não somos educados para isso, senão para competir e triunfar, embora seja cometendo injustiças, etc. Por tanto se deliberar serve para todo, também rve para temas tão complexos como o aborto e a eutanásia. É o que tenho esclarecido em artículos e livros que tenho ido publicando. Mas, tanto o aborto como a eutanásia se enfocam sempre desde o ponto de vista que não é moral senão “legal”. Fala-se muito de “direitos” humanos e de se, as mulheres tem direito ao aborto ou as pessoas à eutanásia. Esse enfoque não me interessa muito. A linguagem da ética não é a linguagem do direito senão do dever. Para saber o que em cada caso se deve fazer devemos ver os valores em jogo, ponderar as circunstâncias e consequências e tomar um curso de ação prudente, que sempre é o que salva mais os valores em jogo e os agride menos. Isto é o que devemos fazer em cada caso. Não se trata, pois, de uma norma geral ou de aprovar uma lei no congresso.

4.-O Sr. é chamado de “Maestro Deliberador”, como chegou, como médico e filósofo com tanta firmeza, a esse projeto que explica e defende com tanto afinco?

Como falava anteriormente, a deliberação não foi inventada por mim. Ela é tão velha quanto a filosofia. Aristóteles nos ensinou a todos que a deliberação é o método, não somente da ética, senão de todo “raciocínio prático” (por tanto, da política, da economia, da técnica, dos juízes, etc.). Eu me movimento muito no mundo da medicina. E as decisões que toma um médico são sempre prudentes ou imprudentes. Nesse campo não cabe falar de decisões verdadeiras ou falsas, como si se estivesse analisando um teorema matemático. Um dos nossos grandes erros é não saber que tipo de lógica, estamos utilizando quando falamos ou tomamos uma decisão. Não é a mesma coisa decidir sobre questões matemáticas que sobre problemas médicos ou judiciais. Carece de sentido dizer que um está deliberando sobre se o teorema de Pitágoras é verdadeiro ou não. Aí não cabe a deliberação, porque ela é um procedimento para tomar decisões prudentes em situações de incerteza, como são as mais frequentes na vida. Entretanto, o estranho é que não se nos educa para isto, que é o que temos que utilizar em nossa vida cotidiana. A tragédia máxima de nossa sociedade está no mal enfocado que está todo o sistema educativo.

5.-Então, em que consiste seu método deliberativo. Concretamente, as formas de segregações e de exclusão social poderiam ser mais combatidas numa sociedade deliberativa?

O tenho exposto com bastantes detalhes em muitas de minhas publicações. Inicialmente, a deliberação é um procedimento natural. Todos, quando vamos dirigindo um carro, deliberamos conosco sobre quando devemos freiar, acelerar, mover o volante, etc. Essa experiência rotineira de dirigir nos faz pensar, erroneamente, que a deliberação não necessita de aprendizagem, porque parece que todos, sabemos deliberar. Isto é um erro, tanto na ordem individual e especialmente no coletivo. Porque, quando devemos tomar decisões que afetam a outras pessoas, a major parte das vezes temos que abrir espaço para a deliberação, de tal forma que deixe de ser individual e se transforme em coletiva. Um exemplo claro é a ação de nossos congressistas (parlamentares). Mas, a deliberação coletiva é muito difícil, porque no processo de deliberação temos que dar as razões de nossos pontos de vista e tentar entender as razões dos que não pensam como nós. Assim, para deliberar devemos partir do suposto de que ninguém tem toda a razão e que o outro pode ter tanta razão como eu. Isso não é fácil reconhecer e aceitar. Num debate sempre queremos sair triunfantes e, se podemos sempre esmagar ao contrário, melhor ainda. Assim não é possível deliberar. Devemos aprender a deliberar, o que não é uma aprendizagem fácil. Porque, isto não consiste, por exemplo, em ler ou estudar um artigo ou uns livros sobre a deliberação. Tem que ser uma aprendizagem prática, fazendo exercícios de deliberação. À deliberar somente se aprende deliberando.

6.-Quais são hoje as principais questões que o projeto genoma colocou para a bioética?

Eles são muitos e muito importantes. Pela primeira vez, o ser humano tem a possibilidade de conhecer e manipular a informação da vida, que é o chamado código genético. Isto, começou, faz meio século e desde então os descobrimentos se tem sucedido a um ritmo vertiginoso. O último faz somente uns dias: tivemos a notícia de que tem podido se corrigir um erro genético do metabolismo através da terapia genética num rigoto, o qual permite não somente curar uma doença grave, como é a cardiopatia hipertrófica congênita, senão fazer que ela não passe para a descendência. Isso não quer dizer que não devemos fazê-lo com muitas precauções, porque em caso contrário estaremos produzindo mais mal que o bem. Por exemplo, essas mesmas técnicas podem servir para uma pretendida melhora da condição humana, através da criação de sujeitos mais altos, ou com maior massa muscular, etc. Mas hoje essas técnicas somente estão permitidas para curar doenças, não para promover uma possível melhora da condição humana.

7.- O uso de animais em pesquisas científicas apresentam duros questionamentos por parte dos grupos que defendem a dignidade animal. Em que consistiria a dignidade animal? Tais questionamentos são um retrocesso ou um avanço desde o ponto de vista bioético?

Não há dúvidas de que nas últimas décadas temos desenvolvido uma sensibilidade para o mundo animal (e para o mundo inorgânico). E, isso, o devemos ver como um grande progresso cultural e moral. Os animais não são simples “meios”, como pensava Kant, que os humanos podemos utilizar livremente. Temos obligações para com eles. Isto é algo que hoje todo mundo o aceita. Outro tema distinto é o de se deve obrigar-nos a todos a respeitá-los completamente, como acontece com as vacas na Índia, ou converter-nos em vegetarianos ou veganos. Temos muitas razões para pensar que o bem-estar animal não pode ser levado aos extremos. De fato, os animais seguem sendo necessários, por exemplo, na investigação científica. E claro, que devemos usá-los o mínimo possível e fazê-lo de modo que eles não sofram, etc. Por isso, hoje existem em todos os centros de investigação Comitês de Ética da Investigação Animal. Mas, pensar que podemos prescindir completamente deles, hoje por hoje resulta ilusório.

 8.- Como devemos lidar com a biotecnologia e seus usos nas indústrias farmacêutica, alimentícia e bélica?

Esta pergunta está relacionada com a anterior sobre a genética e suas modificações técnicas. É o que costuma entender-se por biotecnologia. Podemos afirmar que em si não podemos dizer que seja boa ou má, como acontece com todo tipo de técnicas. Todo depende de como se utilizem. Kant diz que, a mesma faca que serve para comer, seve também para matar, ou que o mesmo produto que em determinadas doses é um fármaco, noutras pode ser um veneno. Não podemos condenar a biotecnologia simplesmente. Tudo depende do modo que a utilizemos. E isso é o que tem que estabelecer os parlamentos promulgando leis que proíbam seu uso incorreto. E quando os resultados afetam a toda humanidade, e não só a um país, então são as instituições internacionais que devem estabelecer as normas. O problema é que, tanto nos congressos nacionais como nas instituições internacionais, cada um busca defender seus interesses próprios, e não o interesse comum.

9.-É muito grande o debate sobre a vida artificial e sua associação como um tema relevante para bioética. Mas, a final de contas, é possível a inteligência artificial? O famoso teste de Turing nos fala algo sobre a inteligência senciente?

Nosso desconhecimento do modo como funciona o cérebro é muito grande. É verdade que temos avançado algo, mas muito pouco. Agora nos deparamos com o movimento de “neuroética”. Mas, quase todo que se publica com esse título, é de muito pouca qualidade. Poderemos chegar um dia a conseguir, mediante meios informáticos, como os próprios do computador, gerar-se algo assim como uma inteligência humana? Não o podemos descartar, é possível. Atendo-se ao caso concreto da “inteligência senciente” de que fala Zubiri, pode surgir por mera complexização de estruturas biológicas? Isto é possível No tema da atividade superior do psiquismo humano somente encontramos duas teorias: “a criacionista” e “a emergentista”. Esta última parte do princípio de que a mudanças estruturais fazem com que os elementos que compõem essas estruturas apresentem propriedades novas, desconhecidas até então. Isto acontece continuamente em química. E pode ser que quando a estrutura do sistema nervoso chega a certo grau de complexidade, surja isso que chamamos de “Inteligência senciente”. Todos estamos de acordo em que esse tipo de funções humanas, como a intelectiva, ou todas as que compõem a vida do espírito, são uma novidade qualitativa, que não pode reduzir-se à elementos que a compõem, Isto é o que desde Hegel se chama de “o salto da quantidade à qualidade”. E este é a origem da enorme confusão que há neste campo.

10.- As novas propostas para velhos problemas costumam surgir e se propagar rapidamente. A sua queixa de falta de qualidade dos trabalhos sobre neuroética podem ser incluídos nessa avaliação. No que consiste, então, o movimento chamado “neuroética” que o senhor mencionou?

O mundo da bioética é muito complexo e resulta muito difícil porque é o ponto de interseção de várias disciplinas, pelo menos duas: a Filosofia, por uma parte, e a Biomedicina, pela outra. Ser entendido nos dois domínios, exige uma grande dedicação e muitos anos de estudo. De não ser assim, resulta desastroso. Porque todo o mundo acredita que sabe ética e a consequência é que, se tem uma formação científica, considera que pode falar sem nenhum problema sobre os assuntos éticos de sua ciência. É um erro. Pois no caso concreto da neuroética, a maior parte dos livros quer há no mercado estão escritos por pesquisadores geralmente neuro-fisiólogos, que não tem uma formação filosófica adequada. O resultado é desastroso. Mas também, é o caso contrário, quando os filósofos escrevem de neuroética , porque tem lido alguns artigos sobre neurofisiologia e acreditam que já conhecem a disciplina. Por isso, um dos grandes problemas da bioética é que se carece de formação institucionalizada, com o que qualquer pessoa crê que pode falar e escrever sobre ela. Este é a origem da enorme confusão que há neste campo.

11.-O Sr. tem insistido varias vezes que os valores se constrõem na família e na escola até os 18 anos. Poderia falar-nos disso, já que parece que vivemos numa época que depositou muita confiança na escola e pouca na família?

Não tenho consciência de ter colocado o limite desse processo nos 18 anos. Mas, cada vez estou mais convencido de que os valores se aprendem muito cedo na vida. Eu tenho ensinado ética na Universidade e tenho reparado que as principais opções de valor os jovens as traem já prontas. Daí a importância da família, que é a matriz fundamental nessa aprendizagem dos valores e também do ensino primário e secundário. Não nos damos conta da importância que tem, e essa é a razão do pouco valor que damos aos professores, como também do pouco prestígio social deles nos primeiros graus de formação. Isto é uma tragédia

12.-Tendo em conta todos esses questionamentos, e outros muitos que poderíamos fazer, o Sr. entende que estamos num momento que precisamos repensar a relação médico-paciente? O que a formação universitária pode fazer para preparar o médico para o mundo complexo de valores humanos?

Tem se escrito muito sobre a relação médico-paciente. O ano de 1963 Laín Entralgo publicou um livro excelente intitulado: “La relación médico-enfermo”. Daquela época para cá tem passado muitas coisas, e este livro teria que ser escrito de novo, mas de forma muito diferente. Nem o mesmo título vale hoje. Por isso, não falamos mais de relação médico-enfermo, senão de “relação clínica”, “encontro-clínico, etc. Minha tese, que defendido durante muitos anos, é que é uma relação de deliberação. O profissional deve deliberar com o paciente sobre os fatos clínicos, mas também sobre valores em jogo e sobre os caminhos da ação possível, no sentido de tomar a melhor decisão possível, que deve ser ótima. Este é um exemplo prático de como pode influenciar a deliberação no processo de tomar decisões e melhorar sua qualidade.

13.-Quais são os grandes desafios da bioética no século XXI?

Serão muitos e muitíssimos. A ética do século XXI é bioiética. Noutras épocas não foi assim. Por exemplo, quando eu era jovem, na época do telão de aço e da guerra fria, a confrontação era Oriente-Ocidente, ou o Socialismo-Capitalismo. Hoje a confrontação não é essa, senão confrontação Norte-Sul, quer dizer, o desenvolvimento insustentável do chamado Primeiro Mundo e o sudesenvolvimento, também, insustentável do Terceiro Mundo. Há teóricos que defendem, que nossa única solução é caminhar parta o “Desenvolvimento sustentável”. Mas, não parece que a política internacional vai por aí. Porque o problema não vai ser consertado pelos políticos, primeiro, porque não sabem, e, em segundo lugar, porque não podem. E isto, porque não é um problema político, senão que na sua raiz é social. Ou educamos a sociedade de um modo diferente a como o estamos fazendo, ou o futuro é muito desanimador.

14.-O Sr. afirma que passamos da confrontação Oriente-Ocidente (Socialismo-Capitalismo) para a confrontação Norte-Sul. Qual a raiz desse novo confronto, muito importante para nós,-“africanos” e “latinos”-que somos do polo sul, e o que isso significa geopolíticamente?

A confrontação Oriente-Ocidente tinha uma linha de demarcação muito precisa que era o chamado “cortina de aço”. Mas, com a confrontação Norte-Sul não passa o mesmo. O sul não é, neste caso, o geográfico, o dos países que estão no hemisfério sul, senão o sociológico, o conjunto de países chamados hoje em dia ”em vias de desenvolvimento” ou “subdesenvolvidos”. A confrontação, hoje, Norte-Sul é a confrontação de “a vida”. O subdesenvolvimento é insustentável, e o desenvolvimento do Norte, também, é insustentável. Devemos caminhar para uma meta, a do “desenvolvimento sustentável”, que é diferente, tanto do subdesenvolvimento insustentável, como do desenvolvimento insustentável. Devemos gerar uma nova cultura, que não pode ser a da “pobreza”, senão o da “frugalidade” no consumo. Quando consumimos mais do o estritamente o necessário, teremos que pensar que o estamos tirando de alguém, presente ou futuro. E isso, é um problema moral. Neste sentido a Bioética tem uma enorme responsabilidade na educação de novas gerações na cultura da frugalidade.

15.-O Sr. tem repetido, que “legislamos muito e deliberamos pouco”. Pois no mundo de hoje, a pesar de predicar muito a liberdade para todo, todavia vemos que as coisas se resolvem com mais leis e procedimentos, tanto nos âmbitos internos como externos, como também na ONU e nas cúpulas internacionais. E mesmo em grupos fechados, logo se criam leis próprias, sempre cerceando a vida pessoal e social. Por quê? Vimos recentemente na Espanha debates intermináveis nas eleições sem resolver dos problemas do povo espanhol e de um governo. Qual seria o valor das pessoas deliberativas nesses assuntos políticos?

Na Espanha existe o mesmo problema que em todos os países do mundo. Pois diante da falta de exemplaridade dos partidos políticos tradicionais, aparecem novos partidos que dizem que vão lutar contra a corrupção, etc. Mas, pronto se vê que o que buscam é chegar ao poder. A política se tem convertido na arte de chegar ao poder e manter-se nele tanto como resulte possível. A política não pode ser a terapia de sua própria doença. A terapia tem que vir de fora, da sociedade. Uma sociedade madura, bem educada, escolherá políticos honestos, não corruptos, etc. A linguagem da política é o direito. A linguagem da sociedade é a ética. E o direito é sempre um epifenômeno da ética. Fala-me que valores tem uma sociedade e te direi que políticos elege. E se a sociedade está mal educada, seus políticos o estarão também, por mais que digam que vão acabar com a corrupção, etc.

16.- Como seria possível falar na esperança da “educação moral’ numa sociedade corrompida completamente, imoral e devastada pela miséria e desigualdade? O Direito poderia ser uma esperança ou um intermediário entre política e sociedade para amenizar, e, aos poucos, equilibrar eticamente situações realmente miseráveis e indignas? E em situações, todavia, mais calamitosas, deveríamos deliberar globalmente convocando instituições (“O direito Internacional”) internacionais para socorrer sociedades que sozinhas não se podem levantar? Qual a importância do Direito no método deliberativo na construção das sociedades?

Penso que é necessário diferenciar muito claramente a Sociedade do Estado. Ao longo da história não tem sido assim, o que foi um grande erro. A estrutura básica é a Sociedade. E linguagem da sociedade é a ética, o conjunto de valores que compõe sua cultura. O Estado é um epifenómeno da sociedade, e assim devemos vê-lo. Por isso, as mudanças devem vir de baixo, da sociedade, embora tão só fosse porque dela saem os políticos. A linguagem do Estado, além disso não é a ética senão o Direito. A Ética é a linguagem da Sociedade e o Direito é a linguagem do Estado. São coisas muito diferentes. A ética tem a obrigação de educar a sociedade nos valores e na gestão dos valores. Se conseguíssemos isto, os próprios Estados funcionariam melhor. Por exemplo, haveria menos corrupção. Na minha opinião, é um erro que se comete continuamente, pensar que a corrupção política se vai remediar fazendo outra política, fundando outro partido, por tanto, fazendo mais política. O problema básico não é o Estado, que Marx, discípulo de Hegel, nos ensinou como mera superestrutura, senão da Sociedade, e, portanto a educação da sociedade. A grande tragédia é a péssima educação que se dá aos jovens. O sistema educativo é o único que pode remediar esta situação, mas é o menos estimado e o pior tratado em nossas sociedades. De novo um paradoxo.

17.-O Sr. surpreende ao lidar como médico com grandes responsabilidades e pensador ao mesmo tempo. E isso tanto em consultas difíceis de bioética e transplantes como Diretor da Fundación Xavier Zubiri promovendo Seminários de Investigação e cursos com os professores das escolas sobre Ética e Cidadania. Como surgiu e como descreveria seu “eros pedagógico” para a medicina e para a filosofia?

Tenho afirmado muitas vezes que não sou um escritor que ensina, senão um docente que escreve. Sempre me vejo como professor, como docente. E isso, porque acredito que é esse o grande defeito de nossas sociedades. Alguma vez tenho dito diante de políticos muito qualificados de meu país, que escolhi ser professor porque acredito na educação. E se tivesse acreditado na via política para mudar a sociedade, tal vez tivesse intentado ser político. Pois bem, quando digo isto diante de políticos, eles ficam incomodados. Mas, era isso mesmo, o que eu buscava. Confiamos todo em política. Como se ela tivesse que resolver todos os problemas. E isso é um grande erro, pelo que estamos pagando muito caro.

18.-Biopolítica é um termo comumente usado por pensadores contemporâneos. De Michael Foucault com os estados e seu poder político em todos os aspectos da vida humana ao “biopoder”, tal como o entende Michael Hardt e Antonio Negri como uma espécie de resistência social, que utiliza a vida e o corpo contra o ‘establishment’ (o exemplo dos refugiados ou do terrorismo suicida, para relembrar alguns). Podemos falar que a bioética é o novo paradigma das ciências sociais e políticas?

Que eu tenha conhecimento, o termo biopolítica hoje não tem nenhuma vigência no mundo exceto em Latino-américa, especialmente no Brasil. A partir de um texto de Fouault, se criou todo um movimento. E tal como se está utilizando, me suscita muitos receios, que já tenho exposto a propósito da política. É inútil querer mudar a sociedade através da política. Pois, como falou Marx, a política não é mais que um epifenómeno da sociedade, o que ele chamou de superestrutura. Considero pouco confiáveis todos os intentos de cambiar a política desde os políticos. No fundo de todos eles só veio o mesmo: a conquista do poder.

19.-A morte é tal vez o único fator que nos faz a todos iguais. A utopia da imortalidade acompanha ao homem desde sempre. Com a crescente tecnologia, que tem impacto na longevidade, estaríamos caminhando para uma nova forma de desigualdade social?

Suponho que se está referindo ao tema da criopreservação de corpos, até ver se a ciência acaba descobrindo o elixir da eterna juventude. Minha opinião é que todo está fundamentado num erro, uma ilusão inconsciente do ser humano que não quer morrer, quer ser imortal. Mas não acredito que se vai conseguir por esses procedimentos. Nossa realidade é contingente, e por tanto mortal. A ciência poderá alongar a vida humana, mas desde logo não conseguir a imortalidade. Para isso a sociedade tem buscado outros caminhos, geralmente religiosos. Haverá algo depois da morte? Não podemos segurá-lo, mas sim espera-lo.

20-.Mas, a Bioética tem como objeto a vida humana. Em termos de compreensão me parece possível refletir sobre a noção de “morte”, já que seu opositor (o antônimo) é a noção de “nascimento”. Quando pensamos em termos contrários, podemos nos opor e melhorar nosso entendimento. Por outro lado, ao pensar na noção de “vida” não temos um opositor, um antônimo. Então parece que por não entender o que seria o contrário da vida, não conseguimos entender a vida em si. Tal vez, se pudéssemos fazer essa oposição, nossa existência poderia ser mais “cômoda”. Mas essa falta de “comodidade” me remete às noções chaves de muitos filósofos, como as noções de “ansiedade” (Kierkegaard), “angustia” (Heidegger),”náusea” (Sartre), reminiscência (Platão), etc. Seria este, por tanto, o grande mistério e a grande questão que a bioética nos coloca? Noutras palavras, seria essa incomodidade e que fazer com o ponto central de grandes questões filosóficas como “o sentido da vida” (Ética), “como a vida deve ser vivida” (Sócrates) ou inclusive, ”se a vida vale a pena ser vivida” (Camus), que ao final de contas, em seu conjunto, são os questionamentos primeiros e últimos que movem o campo dos estudos da bioética?

Querido Felipe. O antônimo da “morte” não é só “nascimento, senão também “vida”. Como falou Heidegger, o problema da vida humana é que tem um termo, a morte. O ser humano é, por isso, um ser que em todo projeto que faz tem um tope, a morte. Daí a “angustia” a “ansiedade”, etc. O problema é se a vida e acaba com a morte ou não. Porque se ela acaba com a morte, não está muito claro por que devemos nos esforçar tanto em fazer as coisas bem (Ética), ou o que passa com as pessoas que tem feito muito mal durante sua vida e não se tem podido fazer justiça com elas, etc. Se acaba a vida com a morte? É o tema que tem tentado resolver todas as religiões. Todas elas pensam que não somente nãoacaba a vida com a morte, senão que a verdadeira vida começa então. E se não for assim, parece que Camus tinha toda a razão do mundo ao falar que o único problema filosófico sério era o do suicídio. Se isto é tudo, si a vida é isto, a verdade é que não merece muito a pena vivê-la. Sobre o outro mundo não sabemos nada, mas eu acredito que a ninguém se pode tirar sua “esperança”, de que haja vida além desta vida. Isto, por suposto, vai além da ética e da bioética, e entra de cheio no terreno da religião. Um abraço.

21.-Quando a corrupção se torna assassinato? A corrupção no Brasil atingiu proporções inimagináveis, que já estão falando sobre o major caso de corrupção na história mundial. A falta de respeito e a adulteração dos princípios originais de nossa Democracia resultaram na degradação dos serviços básicos. Milhares de pessoas morrem todos os dias por causa dos devastadores resultados da corrupção que tomaram todas as instituições públicas e privadas. Parece que ela se institucionalizou. Poderia comentar sobre a corrupção como equivalente ao assasinato e que significa num mundo globalizado donde a cultura ocidental predomina?

Atribui-se à Lord Acton a famosa frase: “o poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. É muito difícil que na gestão do poder não apareça a corrupção, quer dizer, a utilização do poder político em benefício privado de um ou de uns poucos. E é inútil pensar que vai haver política sem corrupção. O que é importante é reduzi-la ao mínimo possível. E isto só se pode conseguir através da educação moral da sociedade. Os países menos corruptos, por exemplo, os escandinavos, se caracterizam por haver tido uma ética social, a calvinista, que é muito estrita. Administrar o poder, muito poder, não há dúvida de que é uma grande tentação. Somente resistem a ela as pessoas com uma sólida formação humana e ética. Entanto a política se entenda como a conquista do poder, e não como serviço público, a corrupção estará intimamente ligada a ela. Por isso vemos todos os dias como muitas das pessoas que se dedicam à atividade política o fazem com este objetivo, o de aproveitar-se do poder que vão gestar. Por tanto, não se trata de um problema político, como tendemos a pensar, porque sempre será preciso que algumas pessoas administrem o poder público, senão como problema social e moral.

22.-Finalmente, o Sr. é um grande estudioso do filósofo Xavier Zubiri. O que a filosofia de Zubiri pode oferecer para pensar a bioética no século XXI?

Eu tive um grande amigo, Ignácio Ellacurría, que assassinaram vilmente em El Salvador no ano 1989, que tinha sido reitor de uma Universidade e professor de filosofia toda sua vida. Ele sempre falava: ”dizem que a filosofia não serve para nada; mas eu acredito que serve para todo”. Saber pensar é fundamental na vida. A filosofia não ensina a triunfar senão a pensar. E isto é fundamental. Suponho que em português existe também a expressão: ”não há nada mais prático que uma boa teoria”. Pois bem, o que eu aprendi de Zubiri foi a pensar e a colocar-me as questões fundamentais da realidade e da vida, que parecem que não servem para nada, mas que servem para todo. Por exemplo, eu não teria podido fazer em Bioética o que tenho feito sem a ajuda de Zubiri. Se de algo estou orgulhoso, é dos Mestres que tive: Xavier Zubiri e Pedro Laín Entralgo. Quando alguém há tido a sorte de ter mestres assim, é muito difícil não sentir-se na obrigação de continuar seu legado e fazer que frutifique o melhor possível. Eu estou orgulhoso de meus “Maestros”.

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